Artigo publicado na Revista Ângulo, Faculdades Integradas Teresa D’Ávila, Lorena, São Paulo.
A comunicação de massa ganhou extraordinário tambor com o advento do rádio. É veículo barato, ideal para quem não sabe ler, não tem barreiras a não ser aquelas impostas pela geografia dos morros e das senas e seu sistema de distribuição requer pouca manutenção, de modo que o investimento inicial fica diluído no tempo. Não há casebre ou choupana brasileira sem um aparelho de rádio. Mais: as pesquisas mostram que o rádio é o mais eficiente veículo – cada aparelho atinge 25 pessoas, contra os 8 atingidos pelos jornais e revistas, e mesmo os 12 atingidos por um televisor.
E eis que surge a televisão. Mais cara, mas infinitamente mais fascinante, não desbancou o rádio, mas passou a exercer um hipnótico papel na sociedade moderna. A TV anunciava o fim do mundo, para a comunicação. A massificação ficou manifesta, a superficialidade passou a ser o ingrediente. O conteúdo cedeu espaço ao entretenimento, o show tomou o lugar da reflexão. A notícia agora é produto de consumo, rápido, mas inconsistente. Como em quase todos os outros aspectos da vida ocidental, o invento se rendeu à supremacia do poder, e a notícia seguiu os mesmos moldes.
O jornalista francês Régis Debray afirma que “a arte de governar é a arte de fazer crer”. Com isto, mostra certo desencanto ao inferir que as notícias não se limitam a refletir a realidade, mas que de maneira dialética a recriam, porque, ao mesmo tempo em que apresentam determinadas concepções da realidade, contribuem para modificar a percepção dessa realidade. É dele uma frase que sintetiza a postura que impera nas redações desde a década de 80: “Antigamente, quando você chegava com uma novidade a um diretor de jornal, ele piscava os olhinhos, esfregava as mãos e dizia entusiasmado: ‘Ótimo, ótimo, vamos publicar já! Ninguém está falando nisso!’ Mas hoje, quando se chega a um diretor de jornal com uma novidade, ele faz um muxoxo de desprezo e diz: ‘Isso não vamos dar. Não interessa. Ninguém está falando nisso.”
O comentário anedótico tem base real, e resume de certa maneira a postura do jornalismo das últimas décadas no Brasil. O que Debray disse está contido quase integralmente nos 11 mandamentos do telejomalismo brasileiro, assimilados pela TV Globo das redes norte-americanas, já no início de suas operações, na década de 60. Os mandamentos são estes:
- A grande notícia está onde estão as câmeras;
- Notícia importante é a que entra nos 22 minutos do horário nobre;
- O telejornalismo é um processo brutal de eliminação de matérias;
- Se o político não consegue dar o recado em 15 segundos, corte o homem;
- Se o presidente fala é notícia;
- Se o concorrente tem é preciso usar;
- Entre a bela e a fera, use a bela;
- Se os jornais publicarem, a TV deve dar;
- Se é importante mas a imagem é pobre, conte e não mostre;
- Se não aconteceu hoje, não é notícia;
- Deixe o telespectador feliz.
Aparecem nessas 11 regras, aparentemente singelas, indicações muito fortes da presença do poder da TV, em variadas formas e de variadas origens, num vinculo interdependente entre imprensa e sociedade.
Dizer que a notícia está onde estão as câmeras é uma presunçosa assertiva do poder da televisão como elemento de catarse do público. Equivale simplesmente a dizer que, se surge um carro de reportagem de alguma emissora de TV, alguém vai promover algum evento para captar a atenção do cinegrafista para fazê-lo registrar as imagens. Que pode ser um protesto improvisado, uma travessura qualquer, e até mesmo uma infração, ou um crime. São os 15 minutos de fama de que falava o artista pop Andy Warhol, e que as pessoas buscam para se sentirem, ainda que momentaneamente, retiradas do anonimato. Não importa se efêmera, a fama será ainda mais completa se puder ser mostrada no horário nobre, que compreende os 22 minutos e meio que dura o Jornal Nacional, carro-chefe do jornalismo da TV Globo (cujo processo de exibição o ex-diretor da Central Globo de Jornalismo, Armando Nogueira, comparava à decolagem de um Boeing). Conseguir bilhete para esse Boeing nem sempre é possível, dado que editar um telejornal como esses pressupõe um processo de escolha e seleção muito cuidadoso, às vezes até brutal, se considerarmos o volume de notícias que ficam em números médios fora da edição do dia simplesmente porque não há tempo para exibir todas estima-se que um percentual de apenas 30% do que foi originalmente captado pela equipes de produção e de reportagem num dia é efetivamente levado ao ar). Muitas vezes interessa para os jornalistas que suas fontes organizem manifestações públicas próximas do espetáculo (alguns autores chegaram a escrever sobre isto) (1), porque garantem cobertura de uma notícia palpitante. As fontes, por sua vez, ganham visibilidade em razão da cobertura — e em geral são pessoas ligadas a elites de poder, pois que somente elas podem arcar com as despesas custosas de uma organização desse nível.
No quarto item, a instrução de limitar o tempo de depoimento dos políticos tem três fundamentos. Em primeiro lugar o medo de entediar o telespectador, porque a política é considerada um tema sem boa receptividade por parte do público. Em segundo lugar, mas talvez mais importante, é o medo que a imprensa tem de ser usada pelos políticos. O terceiro motivo, e o mais prosaico, é que o depoimento (que em televisão e em rádio se chama “sonora”) é a parte mais fácil de ser editada.
O quinto item da lista (quando o presidente fala, é notícia), vem de certo modo reforçar a permanência do pensamento político de Thomas Hobbes sobre a fonte do poder, que Foucault tentou reformar em suas regras.
O sexto item — se o concorrente tem, é preciso usar — nos remete ao que costumo chamar de “pasteurização da notícia”, e que Regis Debray ironizou, como vimos há pouco. Mas há uma forma de poder implícita nessa cândida regra: a de que uma emissora precisa ter o domínio da informação, não ser ultrapassada por outra, não ser apanhada em “delito” por não exibir um assunto em seus telejornais, e que outra emissora apresentou. E concorrência de produto, exatamente como manda o mercado capitalista, mas é também concorrência de domínio, de poder, de supremacia.
O sétimo item apela para o poder pela via da estética do gosto. Pesquisas de marketing revelam, há muito tempo, que a presença de mulheres bonitas em televisão capta a atenção do telespectador, seja do sexo masculino ou feminino.
O oitavo item, que de certo modo repete o sexto, refere-se à concorrência direta de outros veículos de imprensa, que são os jornais impressos. De novo a questão da supremacia, porque o que está em jogo é a capacidade da televisão, que quer ser instantânea, de apresentar um assunto o jornal, pela sua natureza, só será capaz de mostrar na sua próxima edição, no modelo brasileiro é publicada sempre no dia seguinte. O novo item está bastante próximo do oitavo, ao recomendar que a imagem vale mais do que mil palavras: a imagem animada, com seu efeito visual e consequentemente mais sinestésico, sobre o telespectador, é que diferencia televisão de jornal. Portanto, deve ser explorada. E, dentro deste mesmo conceito de concorrência entre TV e jornal, o décimo item se encaixa perfeitamente, porque a instantaneidade da TV decreta a morte das “novidades velhas”, como dizia Antonio Soares Amora em suas aulas na USP.
Por fim, o décimo item: deixe o telespectador feliz. Quanto a isto, os editores têm como premissa o fato de que no chamado horário nobre um grande número de pessoas está em casa, depois do trabalho, cansadas e procurando relaxar, cercadas da família, jantando, enquanto assistem ao noticiário — que é uma forma de exibirem conhecimento aos colegas de trabalho, no dia seguinte. Portanto, não devem ser mostrados assuntos escabrosos, imorais, ou que produzam asco. Dentro desse mesmo conceito, encaixa-se a idéia de que os telespectadores adoram tragédias — na casa dos outros. Uma notícia bombástica, como o anúncio de milhares de mortes por causa de um terremoto ou de um acidente nuclear, é sempre seguido da atenuante explicação geográfica: “na China” — ou em qualquer outro domínio geográfico distante do Brasil.
DIALETO E IDIOLETO
Também foi por “culpa” da TV que houve a imposição de um supra-sotaque no território nacional (a supremacia tirânica do carioquês). Mesmo nas emissoras de TV dos mais distantes rincões nordestinos os falares regionais foram suplantados pelo arrassssstado falarr da capital, onde se localiza a sede da mais importante, a TV Globo. Ao mesmo tempo, a linguagem é a mais coloquial possível. Trocam-se os sinônimos preciosos pelo mais medíocre discurso em nome do chamado “entendimento geral”. A quem serve a vulgarização da língua? Porque a qualidade vem cedendo, na prática, espaço à coloquialidade? Parece uma questão de língua e polis, Platão revisitado. Mas o máximo da frivolidade e da superficialidade ainda viria, na forma das mensagens de correio eletrônico, aplicada em nome da velocidade, objetividade e síntese. A língua foi ainda mais vulgarizada, e surgiu o internetês.
FALÁCIAS DA ESCRITURA “ON LINE”
“Em Internet é assim”, é o que mais se ouve de quem trabalha no meio. E quem trabalha no meio; pessoas que dominam a ferramenta, e não o conteúdo, e se consideram acima das leis da gramática, ortografia e comunicabilidade. Dotadas do poder sobre a máquina, essas pessoas se arrogaram o papel de estabelecer a forma de comunicação que todos deveriam seguir. Chegou-se ao cúmulo, ao meu ver, da superficialidade pedagógica, em nome da velocidade e da comunidade, com a expansão da educação a distância. Tem, admito, propósitos, mas muitos mais despropósitos.
O principal desserviço que a Intemet vem prestando à produção intelectual é o uso e o abuso de não pedir licença. Sem leis, sem proteção, piccolo fanchiulo che piange, a Intemet anulou o copyright (©).
A literatura divulgada às mãos cheias — mais ou menos como queria Castro Alves — é propositadamente apócrifa. Literatura inconsequentemente apócrifa. Preguiça, desprezo ao copyright.
Debate-se sobre leis e fundamentos legais, mas quem fiscaliza? Alguém sabe exatamente quem consome a informação originada da Internet? Onde estão os valores?
A CRISE
A literatura brasileira ocupa um lugar apenas subsidiário nos veículos de comunicação de massa — que são, afinal, grandemente responsáveis pela formação da nossa sensibilidade. Especialmente a TV e a Internet, hoje. Assim mesmo, a produção literária nacional divulgada restringe-se aos sucessos de marketing como os de autoajuda e esoterismo — e que Lima de Albuquerque chama de “espécie de comprimidos de Prozac em forma de livros”. Quando a imprensa concede algum destaque, o espaço é reservado apenas aos autores canônicos chancelados pela academia.
Mas o pior é que os textos começam a ser repassados aos cacos, retalhados, sem referência autoral, copiados e colados indiscriminadamente nos corpos de mensagens descompromissadas.
Povo deseducado, a bordo do maquinário internético, corre o risco de perder identidade, história, valores. Quem serão os leitores do futuro?
Segundo Proust, o leitor é antes de tudo leitor de si mesmo. Parece ser a chave perdida dessa questão.
NOTA:
1. Por exemplo Erickson Richard, Patricia M. Baranek e Janet B.L. Chan, da Universidade de Toronto, dizem isto no trabalho que publicaram em 1989, chamado Negotiahing control: a study of news sources.